A Europa dos filisteus

(António Guerreiro, in Público, 07/06/2024)

António Guerreiro

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No próximo domingo, os cidadãos de todos os membros da União Europeia vão decidir por sufrágio universal directo a composição do Parlamento Europeu. Aparentemente, cumpre-se um acto impecavelmente democrático. Mas onde é que existe um povo europeu, soberano, para outorgar toda a legitimidade a essa instituição? E um espaço público europeu, onde está ele, para que as eleições não sejam uma mera formalidade com aparência democrática? Sabem os eleitores, porventura, mesmo os mais informados, em quem votam e para quê? Não desconhecem eles quase completamente os “grupos políticos” europeus onde se integram, tantas vezes por manobras manhosas, os partidos nacionais? Do ponto de vista político, a União Europeia é uma entidade exemplar do “faz-de-conta”. A mentira, por palavras ou omissões, é o seu modo de vida e o “poder constituinte” que nunca teve.

Nos últimos tempos, o apoio incondicional a Israel deu origem a uma pergunta que já foi formulada noutras ocasiões, mas talvez nunca de maneira tão veemente como agora: “Que autoridade moral resta agora a esta Europa?”. Tal pergunta supõe que há entre a Europa e essa coisa a que se dá o nome de “autoridade moral” uma relação de pertença ou uma consubstancialidade essencial que uma contingência histórica, um acontecimento abrupto, veio desfazer. Trata-se, na verdade, de uma grande ilusão ou talvez de um recalcamento das inclinações criminosas da Europa. Les penchants criminels de l’Europe é precisamente o título de um livro, publicado em 2003, do filósofo francês Jean-Claude Milner, sobre o anti-semitismo europeu que levou à “solução final” para pôr fim à velha “questão judaica”.

A Europa, segundo a tradição filosófica e literária, tem um espírito enorme e um pequeno corpo (o que às vezes a faz surgir como um vulto disforme), o corpo frágil de uma rapariga jovem que foi raptada por Zeus, metamorfoseado na figura de um touro – é o que diz a mitologia grega. Devemos supor que os seus atributos fundamentais são de ordem espiritual porque não há falta e crise mais assinaladas desde o início do século passado do que o “espírito europeu”. À falta do “espírito”, arranjou-se a “identidade”, mas foi uma substituição de fracos recursos e até nefasta. Derrida, a quem ficaria bem o epíteto de “último europeu”, mostrou que o que é próprio da Europa é uma não-identidade, uma “diferença” em relação a si própria. Nesta perspectiva, todo o nacionalismo europeu é sem fundamento ou até apto a criminosas inclinações.

Certo é que, pelo menos desde que Paul Valéry, em 1919, terminada a Primeira Guerra, escreveu um famoso texto intitulado La crise de l’esprit, nunca mais deixou de ser declinada a pergunta: “Espírito europeu, onde estás tu?” (foi nesse texto que Valéry designou a Europa como “um pequeno cabo do continente asiático”). Evidentemente, a pergunta ocorre noutras ocasiões e contextos mais adequados e pertinentes, não os das eleições para o Parlamento Europeu (não é a Europa do “espírito” que se senta em Estrasburgo e em Bruxelas).

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Outro marco importante desta fixação “espiritual” de que a Europa tem sido objecto foi a famosa Conferência de Husserl, que teve lugar em Viena, em 1935, sobre “a crise da humanidade europeia e a filosofia”. Aí, Husserl estabeleceu uma relação de equivalência entre a Europa e a “razão” nascida da filosofia, na Grécia clássica. Hoje, tal proposição soaria como manifestação da arrogância eurocêntrica. A Europa de Husserl era a Europa dos intelectuais, que ele definiu como “funcionários da humanidade”. Cabiam então na designação de “intelectuais” cientistas, filósofos, escritores, músicos, artistas. Podemos ver em Goethe o pai fundador, ou pelos menos uma figura central, de um “campo” intelectual europeu, muito embora a figura do intelectual só nasça mais tarde, com Zola e o seu J’accuse, o manifesto que denunciava o processo viciado da justiça francesa contra o capitão do Exército francês Alfred Dreyfus.

A Europa como ideia e como “espírito” nem sempre deu bons resultados. Mas a brutal omissão da ideia de Europa, como se a União Europeia não fosse mais do que um acordo económico e administrativo entre Estados, é escandalosamente ignorante, própria de filisteus.

Podíamos até dispensar o “espírito”, que é coisa demasiado etérea, mas que nenhuma fala da campanha eleitoral nasça da vontade e da necessidade de evocar a Europa cultural (deixemos para trás a “Europa intelectual”) é verdadeiramente deprimente. Ficamos assim a saber que Europa nos espera e qual a missão das suas instituições. “Autoridade moral”? Antes dela, há outra autoridade inexistente: a autoridade política e cultural.


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